domingo, 24 de outubro de 2010

A farra portenha - Parte 1: El Bistro

Bom, mamãe fez aniversário de XX anos (se eu revelar a idade ela me mata) e quis comemorar em Buenos Aires, então ao invés de arrumar as malas, preferi passar a mão no telefone e fazer algumas reservas para garantir que a viagem seria uma verdadeira esbórnia enogastronômica.

Minha primeira ligação foi para El Bistro, um restaurante de alta gastronomia que fica dentro do Hotel Faena, uma belíssima construção que antes abrigava um silo e que hoje é um dos melhores hotéis da capital portenha, na região de Puerto Madero. O chef é o jovem Mariano Cid De La Paz, pupilo e queridinho de Ferran Adriá, que parece ter aprendido com o mestre como ser excêntrico e, ao mesmo tempo, genial na cozinha. A experiência toda foi magnífica, desde a entrada no hotel, cuja decoração Belle Époque de cair o queixo tem a assinatura do grande Philippe Starck, com ambientes espantosos e decoração exótica. O próprio El Bistro é de um exotismo a parte, com decoração predominantemente branca, alguns detalhes em vermelho e cabeças de unicórnio nas paredes (!)...

Parece até obra do cineasta Tim Burton, mas é Philippe Starck mesmo...

Eu achei meio perturbador o lance das cabeças de unicórnio, mamãe achou bonito

Passado o momento de contemplação, acomodadas em um sofá de couro (branco, obviamente), perguntei à nossa atendente sobre o menú degustação - pelo qual eu estava assanhadíssima para conhecer - mas ela disse não poder dizer a relação dos pratos, pois o chef simplesmente faria o que tivesse vontade. Oi? Tudo bem que o chef é dos bons e eu como de tudo, mas mamãe tem várias restrições alimentares e eu não poderia deixar que nosso jantar fosse arruinado por uma sequência de pratos que ela não gostasse (afinal de contas, a aniversariante era ela!). Daí que, mais olho que barriga que sou, disse que eu iria de menú degustação, enquanto minha mãe pediria à la carte, mas a atendente nos disse ser impossível, pois o menú só poderia ser servido para todos da mesa. Nessa hora, mamãe quase se levantou para sentar sozinha em outra mesa, assim eu poderia pedir o menú degustação, mas resolvemos de uma forma mais pacífica, criando nossa própria degustação a partir das opções do cardápio. Cada uma pediria duas entradas, um prato principal e uma sobremesa, e faríamos o bom e velho troca-troca de pratos na mesa.

Até então, a sommelier nem tinha dado as caras, acho que ela estava mais afim de fazer suas indicações para os que escolheram agradar o chef e pedir o menú degustação, mas mesmo assim não tivemos dificuldade nenhuma para escolher nosso vinho da carta que, te tão grande, mais parecia um catálogo telefônico. Ela só resolveu dar as caras na nossa mesa quando teve que inventar uma boa desculpa para nos dizer que nossa opção não estava disponível e para sugerir outra à altura, que aceitamos sem fazer caso.

Para as entradas, minhas escolhas foram o confit de pato em seu próprio caldo de cozimento e lagostins com curry vermelho. Mamãe pediu uma sopa de alcachofra com ovo cozido em baixa temperatura e um carpaccio de shitake com capelettis de pistache.

Enquanto aguardávamos os pratos, alguns petiscos nos entretinham: muffin de azeitonas pretas - inusitado, mas muito saboroso - torrões de gergelim e um "shot" que não consegui definir exatamente do que era, mas tinha algo alcóolico.

Muffin de azeitonas campeão!

Na sequência, nos serviram uma sopa/espuma de cenoura com geléia de grape fruit (ou pômelo rosado) cuja textura era supreendente, semelhante a uma mousse, porém muito mais leve.

Amuse bouche de primeira

Primeiro vieram o confit de pato e a sopa de alcachofras. Lógico que cresci o olho para a sopa, mas o pato estava tão perfumado, aroma este proveniente de um espesso caldo que foi derramado em volta da carne bem na minha frente, que logo voltei minha atenção para o meu prato. A carne, muito macia, era desfiada e derretia na boca, junto com o caldo de sabor intenso. Como minha mãe não parava de vibrar com a sopa, tive que experimentar antes de trocarmos os pratos e quase me arrependi de não ter pedido uma só para mim. Não que o pato não estivesse sublime, mas a sopa era pra lá de especial, com nacos macios de fundo de alcachofra e um ovo gelatinoso no meio do prato, cuja gema espalhava sua cor dourada a cada colheirada.

Alguém me dá uma colher para raspar todo esse caldo, por favor?

"Zóião" com pompa no meio da sopa

Passado o alvoroço das entradas, mais entradas: lagostins com curry vermelho e ninhos de rice noodles bem fininhos e carpaccio de shitake com mini-capeletti de pistache. Como mamãe não gosta dos amigos do mar, poderia ficar com todos os pequenos "artrópodes" (momento biologia) só pra mim, mas é claro que eu não abriria mão daquelas lindas lâminas de shitake... os lagostins eram frios, mas estouravam na boca de tão tenros. O curry vermelho, que costuma ser bem picante, acrescentou pungência ao prato. Já o carpaccio de shitake era o oposto, delicado, quase etéreo. As lâminas eram bem fininhas, mas assim mesmo dava para sentir a textura carnuda do cogumelo. Os capeletti de pistache eram bem pequenos, mas davam uma certa "sustância" ao prato.

Ainda bem que esse eu não tive que dividir...

... e ainda "roubei" do prato da mamãe

A esta altura, não poderíamos esperar nada que não fosse delicioso saindo da cozinha do jovem chef. Quando bati os olhos no menú e vi que ele fazia o leitãozinho confitado, cozido por horas até sua carne praticamente derreter, não tive dúvidas do que iria pedir. Havia opções bastante exóticas, como coelho e javali, mas este porquinho já habitava minha mente desde a abertura do Dalva e Dito, em SP, com o tal do "porco na lata". Mamãe foi de filé mignon mesmo, cheia de receio de provar algo mais "excêntrico".

O porquinho não era o que eu imaginava... era melhor. Sob uma camada de pele fininha e crocante e outra camada de gordura com textura cremosa, escondia-se a melhor carne de porco que já provei até hoje - e olha que já comi muito joelho de porco dos bons quando morei em Munique - mas esse leitãozinho superou qualquer experiência anterior. A textura da carne rosadíssima, combinada com o sabor que só uma boa dose de gordura pode oferecer, ofereciam garfadas de prazer, uma atrás da outra. Tanto é que nem liguei muito para a marmelada que servia de acompanhamento, concentrando-me somente naquele pedaço de paraíso porcoso.

Eu poderia comer isso todos os dias, sem enjoar...

Os filés eram bons, altíssimos e no ponto certo do pedido, mas nada de especial. Talvez porque, dentre tantas opções interessantes no cardápio, não consigo achar um filé mignon atraente em nenhum aspecto, mesmo amando carne vermelha. Mas uma coisa é fato: a porção era enorme!



Após tão criativo banquete, não poderíamos nos despedir do El Bistro sem provar uma sobremesa, cujas opções eram tão inusitadas quanto os pratos do menú. Mamãe, em um ato de quase-ousadia, escolheu o creme de chá verde, acompanhado de espuma de sei lá o quê e crisp de alga marinha. Agora foi minha vez de ser um pouco mais "conservadora" no pedido e fiquei com a sopa de chocolate, acompanhada de mini flans de baunilha e chocolate (sim, flans, tipo aqueles da infância, quando era preciso virar o copinho pra baixo e quebrar um pininho que deixava o ar entrar e o flan escorria no prato). Enquanto esperávamos, mais uma gentileza: copinho de ruibarbo (!) com flocos gelados de pômelo rosado.

Só descobri que era ruibarbo quando a atendente nos explicou, porque pra mim, tinha gosto de doce de banana!

As sobremesas também tinham seu ritual: a sopa de chocolate foi derramada fumegante sobre os mini flans, preenchendo os espaços do prato, algo semelhante a lava de vulcão, de tão quente que estava... o tal creme de chá verde parecia uma escultura de arte moderna, a montagem era linda. Faltava saber se era gostoso, então provamos: o creme em si era bem espesso, firme, mas não incomodava. Já a espuma de sei lá o quê era fantástica e o conjunto todo se mostrou espetacular, não só pelo sabor, mas também pelo interessante contraste de texturas.



A sopa era muito boa, mas de duas, uma: ou eu tinha maiores expectativas quanto ao excelente chocolate argentino, ou eu já estava no momento "mais olho que barriga" quando pedi a sobremesa, não aguentando ver mais nada na minha frente. Acontece que não achei a sopa tão boa quanto tudo o que a precedeu, mas ainda sim não deixei um mini flan sequer no prato...

Flans que lembravam a infância

O melhor de tudo é que, mesmo um restaurante considerado caro na capital portenha, tem um preço convidativo para os brasileiros, se tomarmos como referência os valores de menú degustação que encontramos por aqui, além da paridade entre peso e real. Nosso banquete, incluindo o vinho, saiu por menos de mil pesos, o equivalente a 500 reais. Vale lembrar que pedimos duas entradas cada, além de um vinho de 200 pesos (100 reais). Digo que valeu muitíssimo à pena, não só pelo jantar magnífico, mas também pela sensação de ter chegado pertinho de Ferran Adriá, nem que tenha sido através de seu pupilo Mariano Cid de La Paz.

El Bistro - Faena Hotel e Universidade
www.faenahotelanduniverse.com

Em breve, as próximas partes da farra portenha: 2 - Le Sud; 3 - San Babila; 4 - La Estancia

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